sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Ao Dom Casmurro

O Jornal Extra publicou, pelo fato da estréia de "Capitu", o seguinte comentário de um espectador:

O cenário é lindo, o figurino é deslumbrante, a luz é sensacional..., mas “Capitu”, que estreou na terça-feira na Globo, fica muito aquém da grandeza de Machado de Assis. A microssérie é lenta, com um roteiro confuso e alguns recursos que não dizem a que vieram.
Parece que tentaram fazer teatro na televisão, só que não dá. O ritmo precisa ser diferente. No teatro, o espectador está lá parado, com todo o foco voltado para a cena e sem interrupções. Enquanto isso, na TV, além da gama de canais que está a um clique, a história é sempre interrompida por um intervalo comercial.
Os atores dão conta do recado, principalmente Michel Melamed, mas o texto confuso e sem uma seqüência linear dificulta a compreensão do que se está tentando dizer. No fim, corre o risco de agradar apenas aos intelectuais e àqueles que tem o hábito de gostar de tudo que é difícil de se entender. Só para “mostrar” que é inteligente. Vale lembrar que Machado de Assis, em sua época, foi um autor popular e famoso por usar uma linguagem de fácil compreensão. Merecia algo parecido.
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Profundamente tocado com o resultado da microssérie e acarinhado com a possibilidade de ver um trabalho de tamanha qualidade na TV, respondi:
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Em palavras do próprio Machado, “a natureza é simples. A arte é atrapalhada.” Fazer arte, em qualquer momento da História, nunca foi fácil; lidar com signos para se fazer compreender ou para, no mínimo, incitar um raciocínio qualquer é sempre uma batalha; quando o objeto da desta é morador do imaginário popular e que, por si, já gerou tantas discussões, controvérsias e reflexões esta batalha ganha proporções monumentais. O desafio de Luis Fernando Carvalho e sua equipe é levar a termo uma versão para TV de “Dom Casmurro”, um dos romances mais lidos dentre os considerados clássicos – escolhido para homenagear o centenário de morte do não menos famoso, Machado de Assis – então batizada com o nome de sua principal peça, Capitu. A história de Capitolina e Betinho é, sem dúvida, uma das mais belas e densas páginas da nossa literatura; página essa que permeia as rodas de colégio, as cátedras, as conversas corriqueiras e, por isso, é motivo, sempre, de grande expectativa.
É indiscutível que para a literatura mundial a obra de Machado de Assis é ímpar e de uma importância incalculável, bem como, para os atuais módulos de criação e execução em voga na TV brasileira, o é a experiência de Luis Fernando Carvalho. Não há como juntar três lugares tão extensos e profundos como a literatura, a televisão e o teatro e sair impune de críticas e de erros; mas, não há como, simplesmente ignorar a importância de tal junção. Ao meu modo, me parece que o resultado do laboratório é bem satisfatório, no mínimo, pelo fato de criar uma nova linguagem estética e literária para um veículo que nos viciou em dramas cotidianos.
Não me parece honesto julgar uma platéia por incapaz e/ou canhestra, já que é dela que depende, não só o teatro, mas a literatura, a TV, a música, o cinema, as artes visuais. Neste mesmo romance (como em muitos outros), Machado, com suas sagacidade e inteligência, por várias vezes dirige-se diretamente ao seu leitor – um gesto, digamos, incomum numa literatura cartesiana – criando, com isso, um novo formato de escrita e incitando no leitor uma nova percepção sobre aquela arte, a literatura. Logo, partir para uma crítica de qualquer obra que cause estranhamento, não pode ser um simples juízo de valor moral ou estético e/ou por uma questão de gosto e desgosto. As soluções encontradas pelo diretor e por sua equipe – mais do que capacitada para cumprir as funções que lhe são determinadas –, no mínimo, esperam um público que não receba as informações confortavelmente, mas, como estímulo e que estes estímulos o evoquem o seu momento de leitura particular da obra machadiana; não dar rostos a uma multidão de passantes, fazendo-os com bonecos de papelão, por exemplo, permitem que o espectador, além de dar o rosto me melhor lhe aprouver àquela figura, reconheça o mecanismo de feitura da própria cena e recrie aquele ambiente com o mínimo de lirismo ao invés de, meramente, observar como uma centena de atores/figurantes vestidos à moda da época transitando de cá para lá numa rua qualquer do Rio Antigo.
Parece-me, lendo o texto ao qual respondo, que há alguns equívocos no que diz respeito a alguns “verbetes”, por assim dizer. O teatro é a arte onde o olhar do espectador está mais flutuante e vulnerável a qualquer reflexo. É pensando neste comportamento do espectador que está ali, não parado, mas em atividade intelectual, que Gertrude Steiner – e este é só um dos exemplos; posso citar Bob Wilson, pra trazer a experiência para mais próximo do momento da escrita – propõe uma cena teatral que se confunda com uma paisagem e que o espectador, dela, escolha um ponto para fixar sua atenção ou não; mesmo com uma paisagem em cena, a sua disposição, o espectador pode querer olhar para o urdimento, para a maquinaria, para o espectador ao seu lado, para o programa da peça. A televisão, por sua vez, já conta com o privilégio de poder selecionar, ao máximo, o que o olho de espectador vai perceber e se utiliza disso com maestria, inclusive, escolhendo o melhor momento para entrecortar a história contada com um intervalo comercial – necessário, já que a emissora é uma empresa e precisa se sustentar e, ao contrário do teatro, o espectador não paga ingresso para acompanhar a sua programação e necessário para que a própria obra aconteça e cause sua esperada catarse a cada momento. Interromper a cena é um recurso que Brecht já usava em seu teatro – claro que guardadas todas as diferenças.
Ainda falando dos “verbetes”, parece haver uma confusão entre o que é “popular” e o que é “populista”. É óbvio que para a compreensão plena de todos os recursos usados por Carvalho em sua microsérie é preciso o mínimo de conhecimento artístico e de alguma sensibilidade – o que pode ser encarado como uma certa intelectualidade –, assim como para compreender, plenamente, a obra de Machado. As discussões sobre o termo “popular” são sempre longas e dúbias, mas, vamos tratá-lo, aqui, como sendo a expressão de alguma coisa “agradável ao povo” (BUENO, Silveira: 1996, 516). O texto que origina esta resposta me parece solicitar, no seu último parágrafo, por uma linguagem que “procure se identificar com as camadas populares; [fig] demagogo” (IDEM), afirmando que assim o era a obra do criador de Capitu e Bentinho. Machado, ao contrário de Aluísio de Azevedo (autor de, entre outras coisas "O cortiço" e "O mulato"), por exemplo, sempre narrou, em suas histórias, uma certa burguesia carioca alfabetizada, com piano na sala e casas de verão na serra e era essa mesma burguesia que o lia com freqüência – tendo contato aos seus textos jornalísticos, aos seus romances e as suas peças. Era essa mesma burguesia que formava a roda de críticos e intelectuais em voga e que, então, o diziam popular. A microssérie de Luis Fernando Carvalho parece-me ter, imediatamente, um alcance muito maior – e falo de camadas sociais – do que a própria literatura machadiana, até hoje.
Para finalizar, me utilizarei de um texto de Chico Buarque e Ruy Guerra que diz: “é muito fácil criticar comodamente sentado em uma poltrona bebendo genebra e arrotando arenque.”

2 comentários:

  1. Infelizmente não acompanhei a micro-série. Pretendo assistir durente as férias(pela net, ou com algum amigo q porvavelmente gravou) e voltar aqui para fazer um comentário construtivo.

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  2. Caracaaaa, me comeeeee!!! Por isso eu te amo! sensacional!!
    Pena que eles priorizam a publicação de criticas pouco construtivas e mal feitas e não as obras de qualidade!!
    O desfecho com a fala do Nassau em Calabar foi tudoooo...arrasou!!
    beijooss!!

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